Vida, santidade, testemunho e obra de Ozanam
Antônio Frederico Ozanam nasceu a 23 de abril de 1813, na cidade de Milão (Itália), de Jean Antoine Ozanam (médico do hospital militar da cidade e professor) e Maria Nantas, dos quais recebeu uma profunda educação religiosa voltada para a caridade cristã. Em 1830, apesar de sentir-se profundamente inclinado à literatura, Ozanam dirigiu-se a Paris para estudar Direito na Sorbonne, fazendo assim a vontade de seu pai. Lá, em 1831, com alguns amigos universitários, aderiu à Conferência de História, que então se realizava sob a orientação de Emmanuel Bailly e reunia vários jovens para discutirem assuntos de relevância. Tais reuniões aconteciam na sede do jornal La Tribune Catholique, do próprio Bailly, que, em 1834, fundiu-se ao importante jornal L’Univers.
Os primeiros anos em Paris rendeu a Ozanam ampla rede de relações e de conhecimento, fazendo-o entrar em contato com os grandes intelectuais de seu tempo, como Lamennais, Gerbert, de Coux, Montalembert e Lacordaire, com quem Ozanam terá uma estreita e recíproca relação de amizade e cooperaão. Interessado pelas idéias dos católicos liberais, Frederico Ozanam participava com entusiasmo das palestras de Lamennais, de seu discípulo Gerbert e de cursos de economia política com Charles de Coux. Também freqüentava assiduamente a casa de Montalembert, onde intelectuais e jovens universitários se reuniam para debater temas como literatura, história, política, pobreza e seus desafios, progresso das civilizações, etc.
Em 1833, ainda estudante, Ozanam sentiu-se profundamente interpelado pela realidade de fome e miséria que o cercava. Sua consciência cristã não permitiu que ficasse alheio ao sofrimento dos Pobres que clamavam a Deus pedindo justiça. Numa das reuniões da Conferência de História, propuseram para a discussão o tema da fé atuante. Então um de seus colegas saint-simonianos[1] fez sérias interpelações aos estudantes católicos que ali estavam, questionando-os sobre onde estariam os frutos da caridade que a religião deles pregava. Esse questionamento fez com que Ozanam refletisse profundamente e chegasse à conclusão de que realmente lhes faltava a caridade, exigência fundamental do Evangelho. E não uma simples caridade que não muda as estruturas, mas uma caridade ampla, que abala o sistema de opressão e coloca os pobres em dinamismo de libertação, valorização de sua dignidade e participação nos rumos da sociedade.
Convocou, então, alguns amigos para fundarem uma Conferência de Caridade, com o objetivo de ajudar os Pobres e necessitados: Quanto desejaria que todos os jovens de espírito e coração se unissem em torno de alguma obra de caridade, organizando-se em todo o país uma ampla e generosa associação para o alívio das classes populares (Ozanam, carta a Ernesto Falconnet, 21 de julho de 1834). E assim começou o que hoje se conhece como Sociedade de São Vicente de Paulo. Era o dia 23 de abril de 1833, dia em que Ozanam completava 20 anos.
O problema que divide os homens de hoje não é de ordem política, mas de ordem social. Trata-se de saber quem terminará vencedor, se o espírito de egoísmo ou o espírito de sacrifício; e se a sociedade será uma sociedade de lucro sempre maior para proveito dos mais fortes ou de dedicação de cada um ao bem de todos e, sobretudo, para a defesa dos mais fracos. Muitos têm em demasia e, todavia, querem ter mais; outros não têm o suficiente ou não têm nada, e querem obter pela força o que não lhes dão. Prepara-se uma guerra entre estas duas classes que ameaça ser terrível: de um lado, o poder da riqueza; de outro, a força do desespero. Nós devemos nos interpor entre esses dois lados, se não para impedir o choque, ao menos para suavizar o confronto. Nossa juventude e nossa modesta condição podem facilitar-nos a tarefa de mediadores, tarefa esta que nossa condição de cristãos parece exigir-nos como obrigatória. Eisa qui a possível utilidade de nossa Conferência de São Vicente de Paulo (Ozanam, carta a Luis Janmot, 03 de novembro de 1836).
Inquietos para darem vazão ao seu espírito de caridade, esses jovens recorreram à Irmã Rosalie Rendu, dedicada Filha da Caridade que trabalhava no bairro Mouffetard. Era o mês de maio. Em meio a tantas atividades e ocupações, todas voltadas para o bem dos Pobres e para seu socorro naquele miserável bairro parisiense, Irmã Rosalie os recebeu no parlatório de sua Casa, chamado pelos visitantes de ministério da caridade, pois ali os corações se abriam, as mãos se dispunham à partilha e as vidas eram tocadas pela caridade e pelo amor daquela abnegada Irmã.
Depois de muita conversa e de sábias instruções, Ozanam e seus amigos firmaram um compromisso: todas as terças-feiras ali iriam, logo após a reunião da Conferência da Caridade, a fim de contribuir, através do trabalho voluntário e dos recursos financeiros, com as obras sociais das Filhas da Caridade. Feliz com os novos colaboradores, Irmã Rosalie apenas os advertiu: Desde que os jovens senhores saibam, antes de mais nada, respeitar os Pobres, amá-los e, sobretudo, não julgá-los, o apostolado virá mais tarde, no devido tempo e lugar.
As primeiras visitas aos Pobres foram um tanto solenes. O povo pobre estranhava, num primeiro momento, aqueles jovens bem vestidos e distintos, circulando por suas ruas sujas e abandonadas. Mas lá iam eles, com o coração cheio de reta intenção e muita disposição para o serviço dos irmãos.
Passando antes pela casa de Irmã Roslaie, que sempre os acolhia calorosamente, pegavam vales que permitiam às famílias atendidas adquirir alimento no comércio local. Depois se separavam, dois a dois, e iam felizes, como verdadeiros cristãos que, não contendo em si a graça e o amor recebidos de Deus, são impelidos ao encontro dos mais abandonados, ao amor gratuito e à construção do novo mundo de paz e justiça.
Por entre ruas e vielas, escadarias e cortiços, Ozanam e seus amigos confrades visitavam, uma a uma, as casas dos Pobres, conversavam sobre a vida e os acontecimentos, informavam-se sobre a família, anotavam suas necessidades imediatas e, antes de sair, davam os vales, alguma roupa, velas e lenha. Trocavam um aperto de mão, prometiam voltar e partiam felizes por tê-los escutado e, sobretudo, por ter-lhes levado algum sinal de esperança.
Quanto ao seu pensamento político e social, pode-se dizer que foi o mais brilhante de todos os que fundaram a Sociedade de São Vicente de Paulo, pois quis dar à Igreja uma imagem mais fraterna, tornando-a atenta a todas as misérias humanas, no intuito de suavizá-las temporal e espiritualmente. Poucos conseguiram ligar tão bem sua experiência de fé às preocupações sociais de sua época.
Apenas – ainda que não seja aqui o momento de explanar minha idéia –, considero o catolicismo de um modo mais absoluto, nele encontrando a fórmula necessária do cristianismo, assim como no cristianismo se me afigura a fórmula necessária da humanidade. Creio no culto como profissão de fé, como símbolo da esperança, como realização terrena do amor de Deus. Por este motivo, pratico a religião segundo minhas forças e de acordo com os hábitos que me foram ministrados na infância, encontrando na oração e nos sacramentos o indispensável sustentáculo da minha vida moral, no meio das tentações de uma imaginação voraz e de um mundo alucinador.
Quanto às opiniões políticas, estamos igualmente de acordo, isto é, desejaria eu também o aniquilamento do espírito político em proveito do espírito social. Conservo, certamente, em relação à velha realeza todo respeito que se deve a um glorioso inválido, mas não me apoiarei nele, porque com sua muleta não poderia mais acompanhar os passos das novas gerações. Não me oponho nem repilo quaisquer organizações governamentais, mas não as aceito senão como instrumentos destinados a tornar os homens mais felizes e melhores. Se queres fórmula, aqui estão:
“Creio na autoridade como meio, na liberdade como meio e na caridade como objetivo final”.
“Há duas formas principais, e estas duas formas podem ser animadas de princípios opostos. Ou consistem na exploração de todos em benefício de um só: é a monarquia de Nero, monarquia de que tenho horror; ou é o sacrifício de um só em proveito de todos: é a monarquia de São Luiz, que reverencio com amor; ou se resumem na exploração de todos em favor de cada um: como a república do Terror, república amaldiçoada; ou afinal consistem no sacrifício de cada um em proveito de todos, e é esta a república cristã da Igreja primitiva de Jerusalém, e talvez a dos dias vindouros, a mais alta etapa a que se possa alçar a humanidade”.
Todos os governos se me afiguram respeitáveis, enquanto representam o princípio divino da autoridade. E é neste sentido que compreendo o Omnis potetas a Deo de São Paulo. Penso, porém, que em face do poder, se torna necessário um lugar para o princípio sagrado da liberdade. Sou de opinião que esse lugar pode ser energicamente reivindicado, devendo ser advertido, de modo intrépido e altaneiro, o poder que explora em vez de se sacrificar. A palavra foi feita para se tornar o dique que se antepõe à força. É o grão de areia contra o qual se vem quebrar o mar.
A oposição é útil e louvável, mas não a insurreição. Obediência ativa, resistência passiva: as “Prisões” de Silvio Pellico e não as “Palavras de um Crente” (Ozanam, carta a Ernesto Falconnet, 21 de julho de 1834).
Frederico Ozanam, sem dificuldade intelectual e religiosa, faz a união cristã entre a missão da Igreja e o ideal de progresso dos povos, percebendo que as duas realidades, Igreja e Estado, sem se aprisionarem ou praticarem ingerência externa sobre a outra, são inter-relacionais, sendo o destino de uma diretamente ligado ao da outra. Ozanam faz uma clara defesa da fé cristã e católica, mostrando sua importância e a grande colaboração que pode dar ao futuro do mundo. Afirma o ideal cristão como ideal humano, desfazendo as equivocadas idéias de que o ideário cristão era divergente ou contrário aos ideais humanísticos de então, expressos, por exemplo, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, um dos legados do período revolucionário. Para ele, ser cristão é uma atitude humanizadora, pois o ideal do ser humano encontra-se em Deus, seu Criador.
Ademais, defende a compatibilidade entre a religião e a liberdade, bem como entre a política e a liberdade. O que de mais útil possui este trabalho é mostrar à juventude estudiosa “que se pode ser católico e ter senso comum, e amar, ao mesmo tempo, a religião e a liberdade”, arrancando-a, assim, da indiferença religiosa e acostumando-a às discussões sérias e graves (Ozanam, carta a Ernesto Falconnet, 10 de fevereiro de 1832). Ozanam acredita numa religião da liberdade, em que o pensamento é colocado a serviço do progresso da fé e da vida; numa religião que não tem medo de se colocar em autoanálise e que acredita que sua missão está para além das circunstâncias históricas, todas elas passageiras, reformáveis e cotingentes.
Ozanam também não tem medo de afirmar a importância das associações civis e reflexivas, lugares fecundos da construção do saber e da preparação para o engajamento social. Antes, vê seu imenso valor e as incentiva para que aprofundem sua dimensão social de defesa do bem comum e de transformação da realidade, especialmente dos mais pobres.
Afirmando seu respeito à nobreza e à monarquia, tem consciência, no entanto, de que são formas políticas obsoletas que não mais correspondem às necessidades atuais. Defende a participação popular e o direito a voz e vez para todos, o poder como serviço de amor e como força propulsora da sociedade, em que todos são valorizados e respeitados em seus direitos. Nessas relações políticas, Ozanam condena a insurreição e defende a resistência passiva, isto é, a defesa dos direitos através de meios não-revolucionários e sangüinários. Neste sentido é que rompe definitivamente com Lamennais, que, desde 1834 já não estava no seio da Igreja e agora se dedicava à fomentação do espírito revolucionário e do enfrentamento.
Ozanam, de fato, queria reunir, para o socorro dos Pobres, todos aqueles que pretendiam um mundo mais solidário. Era essa sua solução para a sociedade e sua mais declarada obsessão.
Somos muito jovens para intervir na luta social. Ficaremos, então, inertes, em meio a um mundo que sofre e geme? Não! Um caminho está aberto para nós. Antes que possamos tratar do bem público, procuremos fazer o bem a alguns; antes de regenerar a França, poderemos aliviar o sofrimento de alguns de seus pobres (Ozanam, carta a Ernesto Falconnet, 21 de julho de 1834).
E, segundo sua convicção, nessa rede da caridade, os cristãos deveriam se colocar na primeira linha, devido à sua própria vocação, a base mais segura da fraternidade e da justiça, para a valorização da pessoa humana e de sua dignidade.
No decurso de sua vida, Ozanam também se destacou por sua habilidade intelectual, o que lhe fez obter a licenciatura em Direito (1834) e em Letras (1835) e, logo depois, o doutorado em ambas as áreas.
As alegrias do duplo doutorado em Direito Romano e Direito Francês, alcançado em 30 de agosto de 1836 foram anuviadas pela definitiva ruptura de Lamennais com a Igreja, reforçada e renovada em sua mais nova obra. As esperanças depositadas no momento da fundação de L’Avenir chocam-se com a derrocada de seu fundador. A decepção de Ozanam é imensa, pois diante da ruptura de Lamennais com a Igreja, o próprio Ozanam sente-se questionado sobre seus ideais liberais. Decepcionam-lhe os rumos que tal movimento, por ele tão cultivado e louvado, vai tomando.
Às vezes tínhamos necessidade de ver diante de nós homens maiores e melhores, cujo caminhar abrisse o nosso caminho, cujo exemplo encorajasse e enchesse de ufania nossa fraqueza. Nós, jovens cristãos, não podemos pensar em substituir estes homens. Mas não poderíamos trocar em miúdos e suprir pelo número e trabalho a lacuna que deixaram em nossas fileiras? (Ozanam, carta a lallier, 05 de novembro de 1836).
Iniciando em 1836 o exercício de sua profissão como advogado, logo em 1837 pede a Bailly o privilégio de colaborar regularmente com L’Univers, como já fazia com outros jornais franceses. Enquanto isso, inicia seu doutorado em Letras, só concluído no dia 07 de janeiro de 1839. Alguns anos depois, a 23 de junho de 1841, casa-se com Amélia Soulacroix, com a qual teve uma filha chamada Maria. Viajando após o casamento pela Europa, o jovem casal foi inclusive recebido em audiência particular por Gregório XVI, sobre o qual Ozanam afirmou:
Se é belo ver o Soberano Pontífice no meio de todas as pompas sacerdotais, no dia da Páscoa, abençoando a cidade e o mundo, talvez não seja menos comovedor ver este apostólico ancião, sozinho e sem aparato, estender as mãos sobre dois jovens e obscuros viajantes (Ozanam, carta a Pessonneaux, 12 de novembro de 1841).
Em 1842, Luis Veuillot assume a direção de L’Univers, colocando todo seu talento e sua capacidade jornalística a serviço do combate ao pensamento liberal e da divulgação do pensamento ultramontano, o reconhecimento da autoridade absoluta e inquestionável do Papa. Mesmo contrariado com os rumos que L’Univers vai tomando com Veuillot, Ozanam continua como seu colaborador. Mas, depois de alguns anos, não oculta suas reticências quanto às tomadas de posição do jornal, principalmente quando estoura a calorosa discussão sobre a educação, confiscada pelo governo (setor chamado Universidade) desde o tempo de Napoleão (1808).
Não gosto da polêmica de L’Univers, mas os que a redigem não são maus, e sobretudo não são invejosos; são homens devotados que não são pagos para isto, que têm sua posição, que não têm nenhum interesse pessoal na querela, e contudo se deixam levar a extremos deploráveis. Com relação a eles, mantenho-me na reserva da prudência e separo a amizade da solidariedade literária (Ozanam, carta a sua sogra, 12 de fevereiro de 1842).
Professor em universidade, Ozanam sente-se como que perdido entre o dilema da Igreja e do Estado a respeito da educação. Católico e professor, Ozanam não sabe como se situar nesta luta aberta entre o trono e o altar: quem deve controlar e regular a educação? E ela deve realmente ser tutelada? E enquanto isso não se resolve, as disputas persistem: o clero procura conservar seus direitos sobre o ensino e o governo pretende estender seu monopólio a todas as instituições educacionais, inclusive os seminários menores.
Em 1843, volta a circular Le Correspondant, um jornal que estava desaparecido desde 1831. Ozanam assume como um de seus colaboradores e ajuda a defini-lo como um jornal a serviço da religião, pela pesquisa da verdade mais do que pela invectiva contra o erro. Mas logo ele tende, como L’Univers, para os ataques unilaterais e condena, de uma só vez, todos os professores, tanto os ateus, como aqueles, a exemplo de Ozanam, que defendiam a religião católica e a divulgavam de maneira lúcida, equilibrada e engajada.
Em 1846, morre o Papa Gregório XVI e tem início o pontificado de Pio IX, em quem muitos colocam suas esperanças, por ter apresentado, enquanto bispo de Ímola, tendências liberais. E, de fato, os dois primeiros anos de seu pontificado marcaram um grande progresso em relação a seu antecessor, especialmente no acolhimento dos ideais políticos que buscavam a unificação da Itália, o que Pio IX aceitava mais para apaziguar espíritos irrequietos do que por convicção. O próprio Ozanam fez questão de ir a Roma, o que aconteceu em 1847, quando foi recebido pessoalmente, por duas vezes, em companhia de sua esposa e de sua filhinha, pelo novo Papa.
Muitas outras vezes poderá ser visto Pio IX cercado das pompas do papado. Era, porém, tocante vê-lo, como agora, visitando seu seminário como prelado consciente e dando de comungar ao povo como um piedoso sacerdote. (...)
Constitui um dos traços do caráter de Pio IX voltar a estas funções pastorais um tanto apagadas até aqui pelos deveres políticos. Que haverá de mais simples aos olhos dos mundanos que pregar, celebrar a missa, ministrar a comunhão e desempenhar as funções do mais modesto cura de aldeia? É contudo assim que Pio IX conquista as almas (...). Seu nome aqui faz parte de todas as conversas e vive em todos os corações. Sua pessoa está também à altura desse papel glorioso e popular; seu talhe é alto e esbelto e seu rosto corado. Tendo apenas 54 anos, conservaria ainda ar de mocidade se seus cabelos não começassem a encanecer e se algumas rugas já não traíssem a fadiga do pontificado. Diz-se que ele mudou muito depois de sua eleição. Mas o que não se alterou é a expressão do seu semblate. Nunca me foi dado contemplar, reunidas, tanta elevação, tanta candura e bondade.
Quando fala, não custa a comover-se, e esta emoção, esta voz penetrante abala todos os corações. Há 300 anos, desde Pio V, que a Igreja não possui um papa canonizado. Este, porém, poderia bem continuar, sobre a cadeira de São Pedro, a longa cadeia dos Santos (Ozanam, carta ao Padre Afonso Ozanam, 17 de fevereiro de 1847).
Em 1848, quando uma nova revolução assombrava a França, um artigo de Ozanam, intitulado Aos Bárbaros!, é publicado em Le Correspondant, causando-lhe muita incompreensão. Sua resposta aos que o acusam, no entanto, é de um valor impressionante, deixando clara a postura de Ozanam entre tantas divergências iodeológicas e políticas de seu tempo: um verdadeiro católico liberal, que acredita na liberdade e no progresso dos povos e das ciências, que tem um engajamento firme e destemido junto dos pobres e sofredores e na busca de uma política que favoreça verdadeiramente o bem comum e a justiça. E tudo isso sem deixar de ser fervorosamente católico, homem de piedade e oração, capacidade reflexiva e espírito humilde, homem com disposição para a compreensão do mundo a partir da fé e para o questionamento da fé a partir dos reclamos e anseios do mundo. Nem reacionário e ultramontano, nem radical e revolucionário: um católico liberal de fato.
Eu previa as queixas e as contradições que ora surgem em profusão. Por outro lado, chegam-me, porém, as adesões mais calorosas de muitos católicos zelosos, desencorajados com a política mesquinha e violenta de L’Univers, assim como com a política impopular e desanimadora de Le Correspondant. (...) Quando proclamo: “Passemos aos bárbaros!”, não pretendo passar aos radicais, a esses radicais que são alvo de controvérsias e de temor (...)
Lá, julgo ver os Sumo Pontífice consumar o nosso anseio de vinte anos: passar para o lado dos “bárbaros”, isto é, do campo dos reis e dos homens de Estado de 1815 para se encaminhar ao povo. E dizendo “passemos aos bárbaros”, eu peço que procedamos como ele, que nos ocupemos com o povo sobrecarregado de tantas necessidades e tão falho de direitos, que reclama com razão um quinhão maior nos negócios públicos, garantias para o trabalho e contra a miséria (...).
E se nada é de esperar destes bárbaros, chegamos então ao fim do mundo e, conseqüentemente, de nossas controvérsias. (...)
Quanto aos retrógrados, perguntaria se não são eles tão pagãos quanto todos os radicais da terra, que pretendem reinar pela força e pelo aniquilamento dos espíritos (...). No que concerne aos impacientes, protesto contra o desprezo com que nossos amigos tratam o “Corpo Consultivo do Estado” (...).
Não deveis acreditar naqueles que julgam mais cômodo condenar em massa um partido, um povo inteiro, do que estudar as divergências que os separam (Ozanam, carta a Foisset, 22 de fevereiro de 1848).
A partir de 27 de fevereiro de 1848, o Padre Lacordaire retoma suas famosas pregações em Notre-Dame, e em toda França plantam-se árvores da liberdade. A Revolução, até então, era apenas uma tomada de consciência. Com um clima favorável e esperançoso, Ozanam e o Padre Maret procuram Lacordaire com a idéia de fundar um novo jornal, já que L’Univers e Le Correspondant já não davam conta de abarcar os ideais de tão ilustres homens, devido à sua reflexão unilateral e combativa. Aprovada a idéia, chegaram inclusive a pensar na compra de L’Univers. Mas resolveram mesmo criar um novo veículo e uma nova estrutura jornalística. Surgia, assim, o jornal L’Ère Nouvelle, ironicamente chamado por Veuillot, ainda diretor de L’Univers, de L’Erreur nouvelle.
Não só estou tranqüilo em relação ao perigo de uma pretensa ressurreição de L’Avenir, mas também sei que combateis eficazmente o que as teorias desse jornal continham de repreensível. Todos os católicos não tardarão, estou certo, a disto se convencerem. Mas o que principalmente apreciarão em vosso jornal é a retidão, a franqueza e um devotamento que faz abstração de todos os partidos e que apenas um objetivo tem em vista e almeja: a salvação da República e da Pátria (Monsenhor Affre, carta a L’Ère Nouvelle, 16 de abril de 1848).
O primeiro número sai no dia 15 de abril, com a grande missão de começar a conscientização das pessoas para as eleições de 23 de abril, que, pela primeira vez, seriam feitas por sufrágio universal. A movimentação é grande e intensa, pois esta oportunidade é única para reorganizar a história da França, depois de tantos anos de dissabores, violências, disputas e revoluções. O próprio Ozanam é convidado a ser candidato em Paris, mas não aceita por ter sido, antes, convidado à candidatura em Lyon, sua terra natal, o que aceitou só mesmo por patriotismo, apesar das grandes reservas feitas. O ideal republicano, mais acentuado em Lacordaire, vai aos poucos sendo assimilado por Ozanam e seus companheiros. O que sei de história leva-me a crer que a democracia é o termo natural da evolução política e que para ela Deus conduz o mundo (Ozanam, carta a Prosper Dugas, 11 de março de 1849)
Aceito a soberania da nação e a forma republicana: aceito-as não como um mal do tempo ao qual seria mister aquiescer, mas como um progresso que é necessário sustentar sem pensar em voltar a reinados já impossíveis. Vejo a república pacífica, protetora de todas as liberdades civis, políticas e religiosas, sem a intervenção do Estado em questões de foro interno. Por fim, quero-a respeitando a propriedade, a indústria e o comércio, todas as instituições que poderiam melhorar e renovar a condição dos operários. Quero menos a organização do trabalho do que a dos trabalhadores por meio de associações voluntárias, seja entre si, seja com os patrões (Ozanam, carta a Louis Gros, 30 de março de 1848).
Inclusive junto ao clero, Ozanam tem uma presença conscientizadora sobre a nova possibilidade que se apresenta para a França. Com vigor e convicção de quem está ao lado dos pobres e tem clareza quanto à certeza de suas opções ideológicas e políticas, Ozanam conclama o clero a estar ao lado dos pobres e pensar a partir deles, e não a partir da lógica opressora da velha nobreza.
Meu amigo, o abade Cherruel, que benzeu treze árvores da liberdade, acha-se ainda tomado de emoção pelas provas de fé que encontrou nessa multidão na qual, desde 1815, estava o sacerdote habituado a ver apenas inimigos de Deus e da Igreja. Ocupar-se sempre tanto dos empregados como dos patrões e dos operários como dos ricos, eis, doravante, o único caminho de salvação para a Igreja da França. É necessário que os vigários renunciem às suas pequeninas paróquais burguesas, rebanho de elite em meio à população pobre que desconhecem.
É preciso que se ocupem não somente com os indigentes, mas com toda essa classe pobre que não pede esmola e que deve ser atraída por pregações apropriadas, por associações de caridade e pela afeição que se lhe demonstra e à qual muito mais é sensível do que se imagina (Ozanam, carta ao Padre Ozanam, 12 e 21 de abril de 1848).
Antes e depois das eleições, movimentos e revoltas pululam aqui e acolá. Apesar desta paz frágil, as eleições acontecem. Ozanam não é eleito, mas obtém 13000 votos, o que o deixa muitíssimo honrado. Lacordaire, ao contrário, é eleito, para a alegria dos católicos e esperança de uma França melhor. No entanto, logo depois renuncia, por incapacidade de manter a vida política e a vida religiosa.
Entre revoltas populares e resistências, ataques e tentativas de tomada de poder e superação de antigos conflitos, muitos vão morrendo, inclusive o grande arcebispo de Paris, Monsenhor Affre, baleado durante a revolução, quando tentava apaziguar os ânimos e socorrer as vítimas. O próprio Ozanam foi obrigado a pegar em armas e defender a Nação. Ainda outro dia, tendo tido a honra de montar guarda à porta da Assembléia Nacional, quase desfaleci de cansaço e calor (Ozanam, carta ao Padre Ozanam, 07 de maio de 1848).
No segundo semestre de 1848, o Padre Lacordaire, Charles de Coux e outros abandonam L’Ère Nouvelle, para consternação dos demais colaboradores. Suspenso a 31 de agosto, o jornal só volta a ser publicado a 02 de setembro, sob a direção do Padre Maret.
Com tantas polêmicas, os católicos se dividiam radicalmente entre conservadores e partidários do liberalismo. Divide-se ainda mais a sociedade. A burguesia se endurece na tentativa de assegurar seu poder e sua influência, os monarquistas ainda sonham com o restabelecimento de seu status quo e os operários e as massas populares ficam cada vez mais abandonados. L’Ère Nouvelle é apaixonadamente republicano e se coloca decididamente ao lado dos operários. L’Univers, reacionário e monarquista, permanece afastado do povo. Para os operários não admitimos nenhum direito estrito, legal, de exigir alguma coisa – afirmava Veuillot.
Tentando clarear a reflexão e apresentar elementos que, verdadeiramente, deveriam orientar a busca de soluções políticas para a crise da França, Ozanam escreve dois importantes artigos em L’Ère Nouvelle: Às pessoas de bem e As causas da miséria: Esmagastes a revolta. Resta-vos um inimigo que não conheceis suficientemente, do qual não quereis que se vos fale: a miséria! (Ozanam).
Mas a continuidade deste 1848 e o início de 1849 são, para Ozanam, uma desmotivação geral e uma decepção. O grande Papa Pio IX, de quem tanto esperava, não consegue reconciliar a Itália, toda ela em ebulição, e se refugia na França. L’Ère Nouvelle é vendido para um nobre, que dá uma outra orientação para o jornal, o que acarreta a demissão de Ozanam, por não concordar com o atraso intelectual e político de seu novo dono. Na eleição para presidente, entre tantos candidatos, a França escolhe o sobrinho do Imperador, Luis Napoleão Bonaparte. Agora o país tem um príncipe-presidente e sua Assembléia Nacional se revelará cada dia mais conservadora. Ademais, a saúde de Ozanam vai ficando cada vez mais frágil e a incompreensão de muitos chega a acusá-lo de não ter fé.
É preciso concluir que éramos servos inúteis, que a Providêcia quer levar a cabo a realização de seus desígnios sem nós. Tudo nos leva a crer que os princípios propagados por L’Ère Nouvelle germinarão em silêncio e os nossos esforços encontrarão continuadores melhores do que nós (Ozanam, carta a Tommaseo, 24 de abril de 1849).
Os meses vão passando e Ozanam vai percebendo que, realmente, os caminhos escolhidos não foram os melhores. A República vai se encolhendo, o sufrágio universal vai sendo transformado em sufrágio excludente das massas operárias, lutas políticas vão se estabelecendo e o príncipe vai cada vez mais desejando e trabalhando para apoderar-se totalmente do poder. E os católicos continuavam divididos.
A 02 de dezembro de 1851, um golpe de Estado é dado pelo príncipe e a ditadura é novamente imposta. Com pouca resistência popular e a lembrança das tragédias de 1830 e 1848, um plebiscito restabelece a dignidade imperial para Luis Napoleão e faz do príncipe-presidente o Imperador Napoleão III.
Não temos bastante fé, meu caro amigo; desejamos sempre o restabelecimento da religião mediante meios políticos, sonhamos com um Constantino que, com um só golpe e um só esforço, reconduza os povos ao redil. Mas desconhecemos a verdadeira história de Constantino. Tornou-se cristão exatamente porque mais da metade do mundo já esposara o cristianismo, e a multidão dos céticos, dos indiferentes e cortesãos que o seguiu, apenas levou para o seio da Igreja a hipocrisia, o escândalo e o relaxamento. Não, as conversões não são feitas por decreto, mas pelos costumes e pelas consciências que precisam ser conquistadas uma a uma. (...)
Não peçamos a Deus maus governos, nem procuremos um que nos desobrigue de nossos deveres, encarregando-se de uma missão que Deus não lhe confiou junto às almas de nossos irmãos. (...)
Se essas verdades desde algum tempo empalideceram, e se essa funesta escola, que bem conheces, tenta os últimos esforços para impelir a Igreja da França ao poder e, por conseguinte, ao abismo que se oculta ao poder, por outro lado, felizmente, não faltam protestos que proclamarão perante a posteridade que o erro de alguns não foi erro da Igreja. (...). O Padre Lacordaire protestou contra esses homens sem esperança que só vêem em torno de si o mal e a condenação. Proferiu as mais belas palavras que jamais ouvi de seus lábios para proclamar a misericórdia de Deus em favor dos que trabalham e sofrem, isto é, em favor da grande multidão de homens. E, quando comentou o texto evangélico “felizes os pobres”, a caridade brotando de suas palavras e transbordando de toda a sua pessoa, teve um desses arrebatamentos que encontramos na vida dos Santos e que deixou as quatro mil pessoas que fremiam sob as abóbadas de Notre-Dame a se perguntarem se era um anjo ou um homem que ouviam. Entretanto, é preciso dizer que várias pessoas tiveram a desgraça de deixar o templo indignados com essas mesmas palavras que nos deixaram maravilhados, sensibilizando-nos até o âmago do coração. Há homens que pretendem abolir o Evangelho nos séculos de revolução, exatamente quando mais necessitamos de suas divinas lições. Mas ninguém quer receber lições.
Vêm os homens de Estado, um a um, proclamar que nada lhes ensinaram os acontecimentos de 1848. Parece-me, porém, que, quando o próprio Deus quer instruir-nos de maneira tão patente, não seria desonra escutá-lo.
Ah! querido amigo, que época tão tempestuosa, mas tão instrutiva! Talvez nela pereçamos, mas não nos lastimemos por tê-la vivido. Aprendamos muito, aprendamos, sobretudo, a defender nossas convicções sem odiar nossos adversários, a amar aqueles que pensam diferentemente de nós, a reconhecer que há cristãos em todos os campos e que Deus, como sempre, ainda hoje pode ser servido. Queixemo-nos menos de nosso tempo e mais de nós mesmos. Sejamos menos desanimados, mas sejamos melhores (Ozanam, carta a Dufieux, 09 de abril de 1851).
Ozanam, decepcionado com esses rumos políticos, intensifica ainda mais seu trabalho como professor e intelectual, nunca abandonado, nem mesmo nos mais tensos momentos de sua vida. A divulgação de seus ideais republicanos e da fé cristã, de seu amor aos pobres e de suas perspectivas para a criação de um mundo novo, segundo o projeto de Deus, ganham ainda mais intensidade nas salas de aula e no jornal Le Correspondant, para o qual Ozanam voltou a escrever desde que abandonou L’Ère Nouvelle.
Suas aulas, sua família, seus alunos, seus artigos, a Sociedade de São Vicente de Paulo, os pobres, sua fé... tudo isso passará agora a ocupar de maneira absoluta a vida e a preocupação de Frederico Ozanam. No testamento por ele mesmo escrito, fazendo uma retrospectiva de sua vida, sua existência transforma-se em oração. O profundo desejo de sempre intensificar sua vida espiritual, pela participação nos sacramentos, sobretudo na Confissão e na Eucaristia, de abrir sua consciência para perceber o mundo e os sinais dos tempos, propondo sempre alternativas para a vida e a sociedade, e ainda seu desejo de ampliar seu serviço voluntário prestado ao próximo sofredor, são agora seu maior legado para os seus e para a história.
Sei que hoje completo meus quarenta anos, mais do que a metade do caminho da vida. Sei que tenho uma mulher jovem e amada, uma filha encantadora, excelentes irmãos, uma segunda mãe, muitos amigos, uma carreria honrosa, trabalhos conduzidos de tal forma que poderiam servir de fundamento para uma obra longamente sonhada. Mas eis que estou atacado de um mal grave, renitente e tanto mais perigoso por ocultar um desenvolvimento completo. Será preciso deixar todos estes bens que vós mesmo, meu Deus, me tendes concedido? Não quereis contentar-vos, Senhor, com uma parte do sacrifício? Qual das minhas afeições desregradas quereis que vos imole? Não aceitaríeis o holocausto do meu amor-próprio literário, de minhas ambições acadêmicas, de meus projetos de estudo onde talvez se misturasse mais orgulho do que zelo pela verdade? Se eu vendesse a metade de meus livros para dar o dinheiro aos pobres, e, limitando-me a desempenhar os deveres do meu emprego, consagrasse o resto de minha vida a visitar os indigentes, a instruir os aprendizes e os soldados, Senhor, estaríeis vós satisfeito, e me deixaríeis a doçura de envelhecer ao lado de minha mulher e completar a educação de minha filha? Será, meu Deus, que não o quereis? Vós não aceitais estas oferendas interesseiras: rejeitais os meus holocaustos e os meus sacrifícios. É a mim que vós pedis. Está escrito, no começo do livro, que devo fazer a vossa vontade. E eu disse: Venho, Senhor” (Testamento de Ozanam).
Era o dia 08 de setembro de 1853. No aniversário de seus 40 anos, a morte vem ao seu encontro, por problemas respiratórios. Sua obra e seu sonho, porém, continuaram a movimentar os corações e a entusiasmar os homens e as mulheres de todos os tempos. Jovem, pai de família, intelectual, político e inteiramente dedicado aos Pobres, Frederico Ozanam marcou a história de seu tempo e dos tempos vindouros. A caridade organizada e o desejo ardente do mundo novo não só tomaram conta de sua vida, mas também se irradiaram para todos os cantos do mundo, unindo homens e mulheres numa grande rede de caridade, amizade e misericórdia.
Não é à toa que o Papa João Paulo II exclamou: Frederico, a tua estrada tornou-se verdadeiramente estrada de santidade. Sim, estrada de santidade leiga, de santidade batismal. Estrada para todos aqueles que, no mundo e, particularmente, no ambiente em que vivem, desejam seguir Jesus no amor e na misericórdia efetiva.
Merecem também destaque os seis amigos de Antônio Frederico Ozanam que assumiram com ele a Conferência da Caridade e se dispuseram, unidos pelo ideal cristão da caridade e do serviço ao próximo mais pobre, a ser um sinal de esperança para tantos irmãos e irmãs desprovidos das mínimas condições de sobrevivência.
Emmanuel Bailly nasceu em Pas-da-Calais, no norte da França, em 1794. Instalando-se em Paris, ali trabalhou como periodista e editor de jornal. Teve seis filhos, dos quais vários se tornaram religiosos.
Seu carisma especial de proximidade para com os jovens fez de Emmanuel Bailly um referencial para a juventude francesa que estava interessada em combinar os estudos acadêmicos com a formação religiosa. Não é à toa que foi exatamente a ele que Ozanam e seus amigos apresentaram seu desejo de fazer algo para o bem do próximo, no que foram tanto incentivados quanto orientados pelo experiente jornalista.
Fundada a Conferência de Caridade, Bailly fez de tudo para inscrevê-la na família espiritual de São Vicente, de quem era profundo admirador e devoto. Em 1844, cansado pela idade e com problemas financeiros, retirou-se da Presidência Geral da Sociedade de São Vicente de Paulo, cuja função foi o primeiro a ocupar, permanecendo apenas como membro do Conselho Geral, praticamente até o ano de sua morte, ocorrida em 1861.
Jules Devaux nasceu em 1811, na Normandia. Por volta de 1830, instalou-se em Paris para estudar Medicina. Esteve com Ozanam na fundação da Conferência de Caridade e foi seu primeiro tesoureiro. Em 1839, depois de apresentar sua tese de Medicina, retirou-se para sua terra natal. Novamente em Paris, morreu em 1880.
Paul Lamache nasceu em Saint-Pierre-Eglise, na Normandia, em 1810. Filho de nobres fazendeiros, Lamache mudou para Paris a fim de estudar Direito. Em 1832, conheceu Ozanam na Conferência de História, em cujos debates participava assídua e fervorosamente, valendo-se da arte da oratória e das reflexões próprias do Direito. Este mesmo fervor seria levado para a Conferência de Caridade e usado em benefício dos mais sofridos e desamparados.
Escreveu para muitas revistas e jornais, participando ativamente da elaboração do pensamento contrário à escravidão em sua época. Renomado por sua facilidade para o magistério, foi professor de Direito Romano na Universidade de Estrasburgo e professor de Direito Administrativo em Bordeaux e em Grenoble. Morreu em 1892.
Auguste Le Taillandier nasceu em Rouen, na Normandia, em 1811, de uma família de comerciantes. Mudou-se com a família para Paris, a fim de continuar seus estudos. Ali conheceu Ozanam e seus amigos na Conferência de História, da qual participava com seu testemunho silencioso, não muito inclinado às grandes discussões.
Em 1833, disse a Ozanam que, para ele, os argumentos retóricos não os conduziriam a nenhum lugar. O melhor seria que se empenhassem em alguma obra de caridade, no lugar de ficar discutindo tanto tempo sobre história, literatura e filosofia.
Fundada a Conferência de Caridade, Le Taillandier dela participou ativamente, estendendo sua caridade aos presos, tanto os do cárcere como aqueles já libertos, que visitava com freqüência, e aos jovens, a quem oferecia consistente formação religiosa.
Quando retornou à sua cidade de origem, casou-se e teve cinco filhos. Fundou em Rouen a Conferência de Caridade e foi seu primeiro presidente. Extremamente dedicado aos Pobres e muito popular entre seus conterrâneos, mereceu receber um vitral na igreja de Saint Godard, em Rouen. Morreu em 1886, tendo dedicado seus últimos dias à família, à educação de seus filhos, aos amigos, à Conferência e aos Pobres.
François Lallier nasceu em 1814, na Borgonha. Conheceu Ozanam na Faculdade de Direito e estabeleceu com ele fecunda amizade, sendo convidado para ser o padrinho de Maria, filha de Ozanam. Nas muitas cartas que trocaram, Ozanam sempre expressou, com simplicidade e afeto, a amizade que tanto os unia:
Creio já te haver dito: as doçuras da família são bem preciosas, pois o sangue tem direitos inatos e imprescritíveis. Mas a amizade tem direitos adquiridos e sagrados e alegrias insubstituíveis. Parentes e amigos formam duas espécies de companheiros que Deus nos concedeu para com eles caminharmos pela vida.
Lallier foi um dos mais entusiasmados participantes e debatedores da Conferência de História. Versado na oratória e hábil na intelectualidade, muito contribuiu para o crescimento da Sociedade de São Vicente de Paulo, cuja Regra foi confiada, em 1835, à sua perspicaz sabedoria e à probidade de suas palavras. Lallier acolheu com muita alegria e entusiasmado empenho este trabalho e, pouco tempo depois, brindou a Sociedade com um verdadeiro manual de espiritualidade e de serviço aos Pobres.
De 1837 a 1839, foi Secretário Geral da Sociedade. Em 1839, já casado, voltou para sua terra natal. Em 1879, alguns anos antes do Jubileu áureo da Sociedade de São Vicente de Paulo, foi-lhe confiada a preparação das memórias do tempo da fundação. E, em 1882, quatro anos antes de sua morte, surgiu, de sua autoria, o livro Origens da Sociedade de São Vicente de Paulo, de acordo com as memórias de seus primeiros membros.
Félix Clavé nasceu em 1811, em Toulouse, no sul da França. Em 1831, mudou-se para Paris. Associado a Ozanam, participou da Conferência de História e, depois, da Conferência de Caridade. Faleceu num asilo em 1853, dois meses depois de Ozanam.
Diante de vidas tão edificantes, uma conclusão torna-se necessária: o testemunho de Ozanam e de seus companheiros é realmente uma profecia para o mundo. Irmanados na amizade que vem do Senhor, tiveram a ousadia de alçar vôo. E não só eles. Mas também aqueles que os seguiram e, na fé e na caridade, buscaram a transformação do mundo, a salvação dos irmãos mais pobres e o embelezamento da vida pelo amor e pela doação generosa de si mesmos.
Deixemos, por fim, que o próprio Ozanam nos fale:
É bem mais alto que doravante devemos procurar socorro. Não é um frágil bastão que se nos torna necessário para atravessarmos o mundo. São asas, essas duas asas que ostentam os anjos: a fé e a caridade. É preciso preencher esses lugares que ficaram vazios. Em vez do gênio que nos falta, cumpre à graça conduzir-nos. Torna-se necessário sermos corajosos e perseverantes. É necessário amar até a morte, combater até o fim. Não contemos com fácil vitória, pois Deus no-la tornou difícil a fim de que mais gloriosas fossem nossas coroas.
Beatificação: 22 de agosto de 1997, por João Paulo II
Memória Litúrgica: 09 de setembro
Um comentário:
Parabéns!
Maravilhoso o texto sobre as cartas de Ozanam.
Gostaria de saber se tem como adquirir o 1º volume das cartas de Ozanam, pois o 2º tive o privilégio de ganhar das mãos do saudoso confrade Paulo Savaia e guardo como verdadeira relíquia, se bem que utilizo muito como leitura espiritual.
Grata.
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